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Indicação de Zanin contraria jurisprudência do STF

(Last Updated On: 14 de junho de 2023)

LEONARDO DAVID QUINTILIANO *

como se um acusado num processo criminal pudesse escolher quem o processa e quem o julga.”

A indicação para o Supremo Tribunal Federal (STF) do advogado Cristiano Zanin, pelo presidente Lula reacende o debate sobre mudanças e limites na liberdade de escolha dos agentes políticos, em especial para a composição de tribunais e outros órgãos de controle, como a Procuradoria da República e Cortes de Contas.

No sistema brasileiro, que adota um mecanismo de controle recíproco entre os Poderes, a fim de evitar abusos ou grande empoderamento por um deles, a composição de órgãos de controle é feita com a participação do chefe do Poder Executivo, que realiza a indicação, seguida de aprovação pelo Poder Legislativo.

Não raro, contudo, há uma tendência do chefe do Executivo de buscar blindar-se por meio dessas indicações, escolhendo quem irá lhe investigar, controlar suas contas ou julgar seus atos. É como se um acusado num processo criminal pudesse escolher quem o processa e quem o julga.

Segundo um velho conhecido da Ciência Política, Montesquieu, todo homem dotado de poder tende a abusar dele até encontrar limites. É natural, portanto, que os agentes políticos busquem blindar-se, fortalecendo e aumentando seu poder. O que não é natural é o povo aceitar esse estado de coisas. Tampouco entender que isso é plenamente admissível num Estado de Direito.

A expressão Estado Democrático de Direito, contemplada no artigo 1.º da Constituição federal, não é enfeite. É uma norma constitucional que traz implícitas diversas obrigações e limitações para os agentes políticos. Seu conteúdo foi criado paulatinamente a partir dos escritos filosóficos que embasaram as primeiras declarações de direitos, em especial as que fundamentaram as revoluções americana e francesa do século 18.

Ao se autoproclamar Estado de Direito, o Brasil se vincula a princípios de limitação do poder e democracia, que pressupõem transparência, moralidade, impessoalidade e responsabilidade dos governantes. Num Estado de Direito, os governantes se subordinam não apenas às leis e à Constituição, mas ao interesse público. Consequentemente, todo ato praticado contrário ao interesse público é nulo.

Diversos precedentes do STF, inclusive, corroboram essa tese. No julgamento do caso envolvendo a nomeação do atual presidente Lula como ministro do governo Dilma (MS 34.070), a Corte anulou a nomeação por considerar haver desvio de finalidade no ato, que buscaria, de forma dissimulada, conferir foro privilegiado a Lula. Igualmente, no caso de nomeação para o cargo de chefe da Polícia Federal de Alexandre Ramagem pelo então presidente Jair Bolsonaro, a Corte considerou que o ato violava os princípios da Administração, diante de indícios de que sua prática dissimulava a intenção de interferência política na instituição policial.

Mais recentemente, o STF anulou o decreto de concessão de indulto ao ex-deputado Daniel Silveira, editado pelo então presidente Jair Bolsonaro. O acórdão ainda não foi publicado, mas, conforme notícia extraída do portal do STF, a relatora ministra Rosa Weber “observou que o benefício foi concedido por simples vínculo de afinidade político-ideológico, o que é incompatível com os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade administrativa”. Segundo a ministra, a concessão de indultos deveria observar o “interesse público, e não pessoal, pois isso representaria a instrumentalização do Estado, de suas instituições e de seus agentes pelo presidente da República para obter benefícios pessoais ‘de modo ilícito, ilegítimo e imoral’”.

Os precedentes acima apresentam o mesmo ponto em comum: são atos de natureza política ou administrativa, dotados de alto poder de discricionariedade. A discricionariedade é uma liberdade limitada pelo direito. Significa que o administrador público, o chefe de Poder, de entidade ou de órgão público tem a possibilidade de escolher agentes políticos para exercer determinadas funções sem a realização de concurso público ou escolha em pleito eleitoral.

A Constituição federal e a jurisprudência do STF estabelecem maior limitação para nomeação de servidores para ocupação de cargos de direção, chefia e assessoramento, os quais devem observar estritamente os requisitos previstos no artigo 37 da Constituição. No caso de nomeação ou indicação para cargos de natureza política, há maior liberdade, o que não significa inexistir limitações.

Tais limitações devem considerar a natureza da função a ser desempenhada e o eventual conflito de interesses na indicação. O próprio STF entende que não se aplica, por exemplo, a Súmula Vinculante n.º 13, que veda a prática de nepotismo no âmbito da Administração Pública, à indicação de ministros, secretários de Estado ou de município.

Nos casos em que o cargo do nomeado tiver função auxiliar do nomeante, como se dá com os ministros e secretários, em relação ao chefe do Poder Executivo, não se vislumbra necessariamente desvio de finalidade ou impessoalidade, quando tais agentes têm formação ou histórico político-profissional compatível com a função pública para a qual são nomeados.

Diversa é a hipótese de indicação feita para órgãos que exercerão controle sobre a autoridade nomeante ou indicante, como é o caso de ministro do STF, que julgará ações movidas em face do presidente Lula. Embora a referida indicação dependa de aprovação do Senado Federal, isso não elide o vício do ato, ainda que aprovado.

Atos políticos que exigem o concurso de mais de um Poder para sua efetivação apenas podem ser refreados no sistema de freios e contrapesos, não convalidados. Exemplo típico é a lei, que nasce mediante projeto de lei apresentado e aprovado pelo Poder Legislativo, posteriormente sancionado pelo Poder Executivo. O STF tem entendimento consolidado de que a sanção não convalida projeto de lei com vício de iniciativa. Do mesmo modo, o Senado Federal pode frear uma indicação que contrarie a ordem jurídica, mas não pode convalidar uma indicação viciada.

A indicação de Zanin, contudo, não é a primeira a gerar esse tipo de polêmica. O ministro Gilmar Mendes teve sua indicação no ano de 2002 combatida, entre outros, pelo conhecido professor da USP Dalmo de Abreu Dallari, acusado de patrocinar interesses político-ideológicos do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Em 2009, no seu segundo mandato, o mesmo presidente Lula indicou o ministro Dias Toffoli, que havia sido advogado do PT nas campanhas presidenciais nos anos de 1998, 2002 e 2006. Em 2017, a indicação do ministro Alexandre de Moraes também sofreu críticas, por causa de sua filiação ao PSDB e por ocupar cargo no governo do então presidente Michel Temer, cujos integrantes poderiam ser alvo da Operação Lava Jato. Já sob a presidência de Jair Bolsonaro, a polêmica na indicação dos ministros Kássio Nunes Marques e André Mendonça envolveu não apenas o suposto desvio de finalidade na indicação de membros que compartilhassem seu perfil ideológico, mas a própria discussão sobre a laicidade do Estado, diante das declarações do então mandatário de que indicaria alguém “terrivelmente evangélico”.

Agora, contra Zanin, pesa também o fato de ter sido advogado particular e amigo do então presidente Lula. Se aprovado pelo Senado Federal, caberá a Zanin também julgar processos em face do presidente Lula, salvo hipóteses previstas em lei de impedimento ou suspeição, como são os casos de processos em que tenha atuado como advogado.

É notório que a indicação não leva em consideração o interesse público. Não é preciso ser jurista ou acompanhar diariamente a política nacional para sabê-lo. Há manifesta violação dos princípios basilares que norteiam a prática de atos políticos, como o princípio da finalidade, moralidade e impessoalidade.

Apesar da manifesta inconstitucionalidade, Zanin será sabatinado, aprovado e eventuais questionamentos judiciais serão julgados improcedentes. Zanin poderá ser um excelente ministro, poderá nada ter contra ele que o desabone, mas o risco de desvio de finalidade e atuação parcial estará sempre presente.

Por essa razão, é importante alterar o mecanismo de indicação para ministros do STF. Mesmo que a indicação seja feita ancorada no interesse público, o processo de negociação que se estende à sabatina no Senado Federal cria uma situação de inevitável conflito de interesses. O critério já empregado para a composição de outras Cortes pode ser utilizado, com a repartição de vagas para membros do Poder Judiciário, Ministério Público e OAB. Salutar seria, ainda, a inclusão de vagas para docentes catedráticos de Direito Constitucional. Todos em lista tríplice oferecida pelas respectivas entidades, diretamente, ou por meio de representações. Uma democracia forte e transparente começa pelo seu guardião maior.

*LEONARDO DAVID QUINTILIANO – (MESTRE E DOUTOR EM DIREITO CONSTITUCIONAL (USP), É PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO)

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